Ela caminhava pela cidade com o sol nos ombros e uma dor silenciosa entre as costelas.
Tinha saído de casa sem olhar para trás.
Levava nas mãos um molho de chaves e um travesseiro antigo.
As chaves de portas que já não abriam mais nada.
O travesseiro de noites em que se deitava ao lado, mas dormia sozinha por dentro.
Andava pelas ruas como quem ainda precisava devolver algo — como se, para partir em paz, fosse preciso se despedir até do que nunca lhe foi realmente dado.
Passou por lugares estranhos.
Um deles, sombrio, carregado de olhares que nunca a viram de verdade.
Entrou por engano — ou por destino — e, mesmo ali, ninguém a tocou. Ninguém a reconheceu.
Saiu invisível, mas viva.
E pela primeira vez, não se sentiu culpada por nada.
No caminho de volta, dois homens surgiram.
Um pediu moedas. O outro a olhou nos olhos, mesmo ela usando óculos escuros.
Ela percebeu: ainda existe quem veja além das defesas.
Foram juntos até onde ela devolveria o que já não era mais seu.
E foi ali, ao lado de uma árvore antiga, que ela o viu passando.
O carro.
O homem.
A vida que um dia ela tentou sustentar com o corpo, mas que nunca sustentou sua alma.
Escondeu-se atrás da árvore.
Mudava de lugar a cada volta dele, como quem dança para não ser vista.
Mas o que ela queria, na verdade, era não ser mais capturada.
E então, ela correu.
Não para fugir, mas para chegar.
E chegou.
Chegou diante de uma piscina de água azul e silenciosa, que brilhava como um segredo esperando ser lembrado.
Havia arquibancadas. Gente assistindo um filme.
A vida passando.
Mas ali, num pequeno espaço, o chamado do mergulho era só dela.
Ela tirou os sapatos.
Foi até a borda.
Sentiu o impulso.
Mas então, pensou nos óculos.
“Onde vou guardar os óculos?”
Como se a liberdade exigisse uma caixinha segura para os olhos cansados de se proteger.
E por causa disso, ela quase mergulhou.
Ficou ali parada.
Entre a borda e o infinito.
Entre o antigo e o novo.
Entre o controle e a entrega.
Não pulou naquele dia.
Mas algo nela já estava na água.
Algo em sua alma já tinha atravessado o véu.
Ela sentiu.
E isso bastava.
Por enquanto.
🌿 Reflexão para você (e para o seu blog, se quiser):
- O que ainda está esperando para ser deixado na “recepção da vida antiga”?
- Qual óculos você ainda insiste em guardar, mesmo querendo mergulhar?
- O que seria necessário para confiar que você é o próprio templo, a própria água, a própria luz?
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