Numa casa no fim de uma rua qualquer, viviam dois seres que nunca se entendiam: o Gato e o Homem.
O Gato era livre. Pulava telhados, gemia alto, provocava a noite com sua fome e seu cio. Amava o vento, a confusão, o instinto. Ninguém o segurava. Quando queria leite, miava; quando queria amor, arranhava.
O Homem, por outro lado, vivia cansado. Vivia tentando manter a casa em ordem, o corpo em ordem, a mente em ordem. Mas não conseguia dormir. O Gato fazia barulho demais. Era sexo demais. Vontade demais. Vida demais.
Todas as noites, o Homem jogava objetos contra o teto, tentava calar os gritos felinos. Não aguentava mais aquela criatura incontrolável.
E o Gato, em troca, afiava as garras. Jurava que ia derrubar aquele Homem do trono. “Ele me reprime. Ele quer me domar. Ele quer silenciar minha natureza”, pensava.
O conflito crescia.
Até que um dia, uma telha caiu. Bem no centro da cabeça do Homem.
Silêncio.
Paz.
O Gato andou pela casa como um rei vitorioso.
Afinal, o dono havia morrido. A casa agora era sua.
Mas algo estava estranho. Ele bebia o leite, mas não tinha gosto.
Dormia no sofá, mas não havia calor. Miava para a noite, mas a noite não respondia.
Faltava alguma coisa.
Foi então que, numa noite sem lua, ele subiu no espelho da sala e viu:
seus olhos eram os mesmos do Homem.
E entendeu.
O Gato era o que o Homem queria esquecer. O Homem era o que o Gato tinha medo de se tornar. Ambos eram parte do mesmo ser, divididos pela dor, pelo excesso, pela repressão.
Não dava pra matar um sem perder o outro.
Naquela noite, o Gato deitou sobre o casaco velho do Homem. Encostou-se em seu cheiro. E pela primeira vez, não miou.
Fechou os olhos.
E sonhou com um lugar onde o instinto e a consciência caminhavam juntos.
Sem guerra.
Sem dono.
Sem fuga.
Apenas inteiros.
Reflexões
O homem como Consciência
Calmo, observador, silencioso. Ele não reage. Ele vê.
É aquele que sabe que não precisa controlar — basta estar presente.
É o Eu Real, a presença que permanece mesmo quando tudo parece colapsar.
O gato como a Mente
Agitada, impulsiva, sensorial.
Hora carente, hora sedutora, hora revoltada.
Quer atenção, quer prazer, quer fugir do desconforto.
E quando não é vista, mia, se debate, se vinga.
A beleza do conto está em mostrar que o homem (consciência) tenta dominar a mente (gato), mas sofre com isso. E o gato tenta derrubar o homem — mas, quando consegue, descobre que não pode existir em paz sem a presença do dono.
Consciência e mente não são inimigas.
Só estão em guerra quando não se reconhecem como parte do mesmo ser.
Exercício:
- Qual parte de mim costuma “miar” por atenção, prazer ou fuga?
(E o que eu costumo fazer quando ela aparece?) - O que dentro de mim vive tentando controlar ou silenciar meus impulsos?
(E o que aconteceria se, em vez de controlar, eu escutasse?) - Existe um lado meu que eu tento matar, mas que continua aparecendo de outras formas?
(Como um vício, um comportamento repetitivo, um sabotador?) - Em que momentos eu ajo como o gato: instintivo, reativo, barulhento?
(E em que momentos ajo como o homem: rígido, cansado, fechado?) - Se essas duas partes pudessem conversar, o que diriam uma à outra?
- O que eu estou realmente buscando por trás da minha “rebeldia” ou do meu “controle”?
(Ser visto? Ser livre? Ser aceito? Ter paz?) - E se eu pudesse acolher o instinto com consciência — sem medo, sem repressão — como seria viver?
(O que mudaria na minha relação comigo mesmo?)
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